Lendo hoje cedo o Estadão encontrei este texto lindo. Cheguei a recortar a página para guardá-la (declaração perigosíssima, alguns podem até desconfiar que já passei dos 30 anos...), e agora o vi na Internet. Estou certa de que só o encontrei para que pudesse compartilhar aqui...
Terminei a leitura quase chorando. Fortalecida por relembrar que nunca, ninguém e nada tem a capacidade de matar o que existe de belo e importante dentro da alma de outra pessoa. E de que devemos sim, lutar por tudo em que acreditamos com amor e autenticidade, não importa a que preço e nem quanto tempo tenhamos de esperar. Mais convencida ainda de que qualquer outra pessoa ó tem o poder de nos impedir de realizar o que quer que seja se nós dermos a ela a permissão para que isso aconteça...
Sexta-feira, Dezembro 17, 2010
QUE PRESENTE DE NATAL O MEU!
Ignácio de Loyola Brandão
O ESTADO DE SÃO PAULO - 17/12/10
Meu presente de Natal chegou adiantado. Semana passada o e-mail de uma senhora de 78 anos entrou em meu computador. No mesmo instante, 40 anos se evaporaram e me vi na redação da revista Claudia, então na Marginal, Freguesia do Ó. Anos 70. Uma tarde, Thomaz Souto Correa, diretor, passou pela minha mesa: "Estamos recebendo um número enorme de cartas com leitoras enviando contos. Precisamos responder. Fique com essa incumbência. Responda todas!" Havia essa preocupação, a interação com as leitoras. Não havia e-mails, fax, computadores, era máquina de escrever, papel timbrado, selo, cola, correio. Não achei uma tarefa desagradável, sou curioso, lia besteiras aterrorizantes, mas lia coisas razoáveis, curiosas, boas.
Via a imaginação das leitoras desfilando pela minha mesa, sonhos, fantasias, queixas, projetos. Um dia, apanhei um conto bom, apenas mal estruturado. A mulher do interior (qual cidade?) sabia o que queria dizer, elaborava personagens, tinha noção da condição feminina. Respondi, elogiei, fiz sugestões. A resposta demorou, o conto voltou reescrito. A demora, ah, a demora. Vocês nem imaginam por que demorava.
Minha resposta tinha ido para a casa de uma amiga da leitora que a entregava em momento propício, quando o marido da contista não estava em casa. Ele, como homem, dono da casa e talvez pensando que mandasse na mulher e nos sonhos dela, a tinha proibido de escrever. Encontrara uns escritos, rasgara, indagara: qual é? O que ela pensava?
No entanto, a leitora continuou a escrever. Refez o conto, mandou, fiz novas anotações, ela estava a um passo do muito bom. Nova demora, meses passaram. Outra carta. Então, fiquei sabendo as condições em que ela escrevia. Era à noite. Quando a casa se aquietava, ela esperava o marido ir para a cama, ia junto, dava um tempo. Quando percebia que ele dormia pesado, saía, trancava a porta do quarto, ia para a cozinha, fechava a porta, cuidava para que ruídos não vazassem. Cobria a mesa com um cobertor grosso (medo do barulho), levava o abajur para baixo da mesa, ajeitava-se e escrevia. Já vi na minha vida todo tipo de refúgios para escrever, mas este bateu tudo, ganhou. Porque era a escritura sob repressão. Mas ela desafiava o totalitarismo, a rudeza, e escrevia até a madrugada. Com fita-crepe escondia tudo embaixo da mesa.
Ela deixou aquele conto de lado, mas tentei novos contatos, queríamos que ela nos deixasse contar a história dela na revista, num número especial dedicado à condição feminina. Teria junto o comentário de Carmen da Silva, uma das jornalistas que desbravaram o mundo feminino, carregando bandeiras que a tornaram querida pelas mulheres, odiada pela ditadura, mal vista, visada. Carmen foi uma brava - morreu de câncer, nova ainda - e doce figura! Mas a leitora disse não, complicaria demais a vida dela, que não era fácil. Uma de minhas últimas cartas foi: "Pelo amor de Deus, não pare de escrever! Nunca." Depois, o silêncio.
Passaram-se 40 anos. Deixei Claudia, fui para Planeta, Ciência & Vida, Vogue, escrevi meus livros. Nós, escritores, sempre nos perguntamos: quem é atingido por aquilo que escrevemos? A quem chegam nossas palavras, escritos? Em quem repercute o que dizemos em palestras, conversas, bate-papos? É um dos mistérios deste ofício. De maneira que, quando temos uma resposta, é preciso se alegrar. É o que faço agora com o e-mail de Maria Olimpia, chegado semana passada. A melhor coisa deste ano, dos últimos anos. Ela escreveu:
"É provável que você não se lembre de mim, pois tivemos um contato há cerca de 40 anos atrás, quando você trabalhava na revista Claudia. Esta revista oferecia uma oportunidade a escritores novos e mandei um conto para ela. Junto foram algumas informações sobre mim e expliquei que escrevia na "calada da noite" escondida do meu marido. Ele não me "permitia" ser uma escritora. E, para minha surpresa e alegria, recebi de você, a sugestão de contar na Claudia a minha história. Isto não aconteceu, mas, dentro de mim, você, colocou a semente da coragem para continuar tentando.
Hoje, dia 10/12, ganhei de presente o livro Ruth Cardoso, Fragmentos de Uma Vida, escrito por você. Fiquei emocionada. Estou com 78 anos e, hoje, viúva, morando em Visconde de Mauá, sou uma escritora e me dedico à literatura. Já vendi 600 exemplares de meu livro A Cozinheira e o Visconde. Sou "Chef de cozinha", mas, jurei a mim mesma que, ao fazer 80 anos, deixarei a cozinha e trocarei, definitivamente, a colher de pau pela caneta(ainda uso, digito muito mal no computador). Fico feliz, em poder agradecer a você, o bem que me fez com seu apoio e estímulo, embora esteja fazendo isto 40 anos depois. Carinhosamente, Maria Olimpia."
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